Para contar a história apropriadamente, preciso, neste primeiro parágrafo, infundir neste texto aqueles detalhes tão preciosos para a compreensão do contexto da narrativa. Em fevereiro de 2004, decidi passar uma temporada estudando e trabalhando em Londres. Então, na capital britânica, me matriculei em um curso de inglês de seis meses e, para me sustentar, enganava como garçom e segurança em eventos.
Em maio, surgiu o convite da agência para trabalhar no Chelsea May Flower Show, a mais tradicional exposição de flores em Londres. Antes que você pense “Esse drama todo por causa de flores?”, devo contar quem era a principal convidada do evento: a Rainha Elizabeth II.
Confesso que, naquela época, aos 18 anos de idade, a menção da Rainha não me empolgava tanto assim. E foi com essa ingenuidade que eu cheguei ao local, 10 minutos antes do horário determinado, às 6h50 da manha. Estava eu na frente do London Gate – que eu descobriria mais tarde ser um dos quatro portões de acesso ao Chelsea Royal Hospital – esperando algo acontecer ou alguém vir falar comigo para me indicar como eu entraria ali, já que tudo estava fechado. Após muita conversa, uma mulher me entregou um passe e um uniforme. Uma calça preta, uma camisa vermelha, um colete daqueles laranjas fosforescentes e um rádio tipo walkie-talkie.
Assim, como sempre acontecia antes de shows ou eventos grandes, houve um briefing, de meia hora, mais ou menos, dado por um supervisor aos seguranças. Trata-se de uma explicação geral dos procedimentos de segurança. Quando aquele baixinho começou a falar, fiquei com medo. Segundo ele, o risco de ataque terrorista em Londres, naquele momento, era enorme. Dois meses antes, um ataque terrorista em Madri, na Espanha, havia deixado 191 mortos e 1,7 mil feridos. Todos acreditavam que Londres seria o próximo alvo de células ligadas à Al Qaeda, na época ainda em ebulição. Assim, o Chelsea May Flower Show, por contar com a presença de celebridades e, claro, da Rainha, tinha potencial gigante de ser um alvo. Por isso, deveríamos ter muito cuidado, ficarmos alertas todo o tempo e prestar atenção aos códigos de segurança. Se anunciassem pelo radio “Mr Marbles is in …”, isso significava que havia uma briga em determinado local e que os seguranças mais próximos do lugar deveriam acudir, imediatamente. Se gritassem “Mr Erif is in…”, então havia fogo. “Mr. Sans” – tínhamos 45 segundos para nos preparar antes que anunciassem para todo o público que o show devia ser evacuado. “Mr Moby” – ameaça de bomba.
O primeiro dia era apenas um teste. Os últimos preparativos estavam sendo finalizados, as flores ajeitadas, os seguranças treinados. Tudo corria bem, aparentemente. Eu, porém, estava angustiado. Sempre fui péssimo com mapas, e o lugar era gigante. Além disso, não memorizei nem metade dos códigos. O boato de que a Rainha poderia visitar a exposição nesse dia, a fim de não enfrentar o tumulto do restante do evento, também colaborou para o meu estado de espírito. Sorte que a maior parte do tempo passei com um amigo meu (conheci ali, mas a tensão o transformou rapidamente em irmão) em frente de um trator que estava carregando ainda plataformas, madeiras e lixo de um lado para o outro. Gritávamos “Watch out, please! There’s a forklift coming”. E usávamos o braço para sinalizar – e, às vezes, quase empurrar os mais surdos.
No fim do dia, não me pergunte onde eu estava. Pois eu não sabia. Já estava tonto de tanto ouvir os chefes da segurança falarem no rádio e de tentar me localizar naquele mapa. Então, no pior momento possível, captei alguns sinais que indicariam que a chegada da Rainha estava próxima.
Quando vi diversos seguranças correndo para um lado, tive a certeza de era a hora. Pensei em fazer o mesmo, mas ouvi no rádio que todos deveriam manter suas posições. De qualquer forma, ponderei, ela vai ter de passar por aqui. E estaquei ali mesmo, imaginando o que faria na presença de Sua Majestade. Alguns minutos depois, os flashes ainda disparando do outro lado do pavilhão, o supervisor cochichou no meu ouvido: “Be ready. The queen is comingo this way”.
A Rainha empreendia passos curtos e rápidos. Dizem que ela está mal das pernas, pensei, mas não é verdade. A cabeça branca reluziria se não fosse um de seus indefectíveis chapéus. Ao seu lado, outras senhoras velhinhas. Na hora, decidi que eram primas da Rainha, o que provavelmente não tinha nenhuma relação com os fatos. Completavam o cenário fotógrafos, cinegrafistas, jornalistas e alguns convidados especiais que tiveram de desembolsar mais de mil pounds (5,5 mil reais, na época) para estar ali no momento.
Eu destoava de todo mundo. Não usava o terno dos seguranças da Rainha, não tinha os cabelos brancos das primas nem ostentava uma daquelas câmeras das equipes de reportagem. Eu era o único segurança da agência naquele local, o único vestindo um jaleco laranja fosforescente. E a menos de três metros de distância, eu me inclinei, expus toda a coluna e, completamente desajeitado, reverenciei a Rainha da Inglaterra.
Na minha cabeça, ela sorriu de volta. Mas a imaginação, essa safadinha, sempre se intromete.