Crônicas de Londres (Eça de Queirós)

Um dos grandes romancistas do século 19, o português José Maria de Eça de Queirós (originalmente, Queiroz) viveu quatro anos na Inglaterra, de 1874 a 1878, como cônsul em Newcastle e Bristol. Nesse período, além de publicar O Crime do Padre Amaro, A Tragédia da Rua das Flores e O Primo Basílio, Eça de Queirós escreveu diversas crônicas para o jornal Diário de Notícias, de Lisboa, nas quais descrevia os rumos da sociedade inglesa e exprimia admiração por novidades da época, como a invenção do telefone.

Crônicas de Londres - Eça de QueirósPara os apaixonados por Londres e pela Inglaterra,, a leitura de alguns desses textos, reunidos em Crônicas de Londres, é recomendada. Capta a essência do século 19 sob o prisma de um português sediado na Inglaterra, em narrativas espirituosas e – espantosamente – atuais.

O livro pode ser baixado gratuitamente em PDF, pois é de domínio público. Para isso, entre neste link.

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Trechos

O telefone

Começa a falar-se, com seriedade e espanto, numa nova descoberta americana, o telefone: é um telégrafo para a transmissão do som. Esta ideia, que nasceu em 1861, tem tido um progresso tão fecundo que há dois meses já se apresentaram perante as provas públicas dois sistemas rivais. O mais perfeito, parece. é o do Dr. Bell. O seu aparelho, que tem a aparência de um sistema telegráfico e um princípio electromagnético, transmitiu sons, numa última experiência, feita a cento e quarenta e três milhas; não só o som da voz chega perfeitamente claro, mas distinguem-se as inflexões mais leves. A experiência foi realizada em Boston e Conway, e àquela forte distância distinguia-se uma rabeca de um violoncelo; o rumor, as conversações, as risadas das pessoas que estavam junto do aparelho em Boston eram ouvidas em Conway com a distinta e exata nitidez com que se ouve numa torrinha o que se canta no palco. Calcula-se que se poderá fazer chegar o som a transatlânticas distâncias. Em Filadélfia organiza-se um concerto experimental, em que o público estará a cinquenta milhas dos artistas.

Dispersão da Família Real

A season continua, como dizem aqui, dull – isto é, faz bocejar. Uma das causas desta monotonia é sem dúvida a ausência e dispersão da família real. A corte é o centro da season: sem ela o high-life de Londres está como uma vela a que falta o vento. A princesa de Gales está em Atenas: o príncipe de Edimburgo no Egito, o duque de Connaught na Irlanda e a rainha na Escócia. A sua partida para a Escócia foi mesmo origem de um artigo do Spectator que me ia matando de espanto. A imprensa inglesa não fala da Família Real senão de joelhos: imagine-se, pois, o horror, a estranheza, a boca-aberta que me causou o Spectator, dizendo, com uma frieza extraordinária e amarga – que a partida da rainha, para o fundo da Escócia, no momento de uma tão grande crise na Europa era uma alta inconveniência; que o seu primeiro-ministro, cheio de gota e de confiança na sua soberana, era obrigado a fazer todas as semanas uma longa jornada de caminho de ferro para ouvir uma palavra escassa dos reais lábios; e, continuando num tom de fria ironia à inglesa, terminava por dizer que desgraçadamente as pessoas reais julgavam que o que lhes convinha a elas convinha à nação; mas que a verdade era que nada desabitua da realeza como a ausência do rei – e que saber viver sem ver o aspecto do trono é o primeiro passo para a educação republicana! Apanha! O Spectator, como sabem, é um dos primeiros jornais da Inglaterra. É esta monotonia da season que obriga os rapazes a inventarem alguma coisa de original e de pitoresco. Dois lordes, menores de vinte e cinco anos, descobriram o seguinte: vestirem-se de padres – e irem, por todas as tabernas do Strand, beber, gritar e dar o espetáculo curioso de dois jovens eclesiásticos ébrios. Esta maneira nova de desacreditar o clero não tinha ainda lembrado aos radicais. Honra seja aos dois jovens lordes, que inventaram tão delicadamente esta nova tática revolucionária!

O general taciturno

Passemos à sociedade. O leão do dia em Londres é o general Grant, ex-presidente dos Estados Unidos. Festas, bailes, recepções, solenidades, tudo o que se pode fazer para celebrar um herói lhe tem sido prodigalizado, com uma abundância forçada, ia quase a dizer afetada. O ministro dos Estados Unidos deu-lhe um grande jantar, a que assistiu o príncipe de Gales. A feição característica deste jantar foi que, sendo dado pelo ministro americano, na legação americana, a um presidente americano, havia tudo, exceto americanos! Diz-se que a razão é que o ministro não encontrara em toda a colônia americana que habita Londres ninguém à altura de se sentar à mesa com o príncipe de Gales! Isto tem causado em Londres uma doce hilaridade. O que mais impressiona, parece, no general Grant é a sua taciturnidade. E quase impossível arrancar-lhe uma palavra. Tem atravessado as festas, os bailes, os jantares, com os lábios cerrados como um trapista. No jantar que lhe deu o duque de Wellington esteve, até à sobremesa, imóvel e mudo: e de repente, dirigindo-se ao duque, perguntou-lhe no meio de um silêncio solene: – Qual foi o maior número de soldados que seu pai comandou, duque? O duque disse que, aproximadamente, duzentos mil homens. – E eu meio milhão – respondeu Grant. E desde então, há quinze dias, não tornou a falar.

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